zoo tycoon 2

maria
3 min readMar 14, 2023

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o mundo animal foi a primeira ficção que me seduziu. me lembro como se fosse ontem e todos os dias, a cena do meu corpo criança jogado no sofá há muitas horas, ouvindo atentamente a voz familiar do david attenborough. ele me contava o milagre que é que ambas as gazelinhas gêmeas tenham sobrevivido ao parto. o macho é mais tímido e a fêmea, sua irmã, é a curiosa. elas ficam perto da mãe, de orelhas atentas. então a leoa surge da relva, e afunda seus caninos no pescoço de um deles, o irmão, e o arrasta pela savana.

na narrativa da natureza que a bbc uk criou pra mim, eu não precisava ficar triste pela gazela. o leão também precisa comer, afinal. é apenas a ordem natural das coisas, a cadeia alimentar. no mundo dos animais, diferente do nosso, não existe pecado, culpa ou perdão. todos os rios apenas seguem seu curso: se curvam à natureza sólida das rochas e das montanhas, e curvam a natureza maleável da terra.

que delícia me perder ali, nesse mundo outro. uma lógica, percebi bem cedo, impossível de transpor. na frente da tevê, esquecer que eu possuía um corpo real, vendo pela 5a vez o mesmo documentário: não havia produções o bastante pra reprisar no animal planet e me satisfazer. é que as coisas do mundo real, o mundo dos homens, da ordem dos homens, essas nunca podem ser ordenadas de verdade. entrevi o mistério à espreita da minha jugular.

eu amava (ainda amo) classificar os cães nas caixinhas das raças. esse é um basset hound. esse é um akita. olha mãe, um dálmata! eu nunca tinha visto ao vivo. esse é vira-lata, mas tem algo de pastor alemão nele, com feições de labrador. quando eu ganhei o attos, aos 9 anos, sob a promessa que ele era um chihuahua, medi sua cabeça em relação ao corpo com uma fita métrica e descobri que ele não era poderia ser puro, de acordo com a ordem do kennel club. continuei amando meu cachorro, eu só queria o alívio de saber.

mais tarde, o que me aliviou foi a ficção distópica infanto-juvenil, com suas facções, estruturas rígidas e seus escolhidos. se seria a escolhida ou não, não sabia. importante era que eu e todos à minha volta pertenciam à alguma das casas enquanto, em transe, eu habitava o livro. eventualmente, surge uma fixação por mitologias, os panteões e seus deuses, o tarô. reservatórios ocos e disformes, que insisto em tentar preencher com a correnteza da consciência, num exercício de sísifo.

encontrei esse mesmo prazer hipnótico nas ficções dos jogos de simulação. os olhos vermelhos de um sono que eu não sentia já às 6h20 da manhã, completamente imersa no meu primeiro notebook, escondida nos lençóis. as últimas 10 horas eu tinha passado cuidando, sempre escolhendo a opção de ter recursos infinitos, de gazelas e leões no zoo tycoon 2. às vezes, apagava as barreiras entre seus cercados para contemplar os pixels seguindo o curso natural das coisas.

na hora de escolher meu parceiro em stardew valley, a wiki sempre aberta ao lado me conta exatamente qual presente vai fazer ele gostar de mim, e onde encontrá-lo. no início da pandemia, tive um episódio com o jogo de simular fazendinha: me rendeu uma infecção urinária após 10 dias jogando em média 9 horas por dia. eu não queria saber de beber água ou ir ao banheiro, apenas de pescar peixes pixelados apertando minha barra de espaço num ritmo pré-definido.

tenho pensado que a minha ansiedade talvez venha do fato de que eu tô tentando desde que eu me entendo por gente ordenar a realidade como se fosse uma história, um texto que funcionaria sozinho, contido em si mesmo, cuja relação com real fosse apenas uma coisa meio metonímica. talvez por isso a nostalgia excessiva. o passado é onde encontro a possibilidade de me fixar na minha própria ficção, já que o presente me tem de mãos atadas, fugindo da incerteza das consequências.

quando o mistério sai da penumbra e se põe na minha frente, olho fundo dos seus olhos. é a coisa mais bonita que eu já vi. quando ele me olha de volta, desvio. espero um dia encarar isso como um flerte, não uma ameaça.

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